sexta-feira, 7 de junho de 2013

Quem evangeliza os evangélicos? (Ou: Coando mosquitos para engolir camelos)


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Esperança para muitos de dias melhores na política no Brasil, a provável candidata à Presidência Marina Silva viu-se envolvida numa polêmica ao dizer que o pastor e deputado Marco Feliciano é criticado “por ser evangélico e não tanto por suas posições política”. Face às reações, a ex-senadora foi obrigada a esclarecer melhor sua frase, mas fica a questão sobre o que significa mesmo ser evangélico e em que medida certos líderes religiosos tem a ver com os atos e as palavras de Jesus. O pastor Feliciano oferece pistas valiosas para uma tentativa de resposta. Especialmente pela eloquente metáfora de um crime virtual que ele publicamente cometeu.
Numa de suas prédicas contra a santidade aparente dos fariseus, Jesus diz que todo o oculto será um dia proclamado dos telhados. Graças à hoje quase divina onipresença de celulares que filmam, esse tempo de onisciência parece ter chegado.
E foi assim que alguns canais de televisão puderam reproduzir uma cena estarrecedora. Durante um culto, o pastor e deputado Marco Feliciano, todo vestido de branco, lamentava não ter estado presente na morte de John Lennon para desfechar mais três tiros no corpo caído: um pelo Pai, outro pelo Filho e o terceiro pelo Espírito Santo. Microfone numa das mãos, revólver imaginário na outra, chegou a encenar para os fiéis como seria o seu ato.
A cena, deprimente, desperta em cristãos mais sensíveis ao que importa a necessidade de rever algumas facetas do explosivo crescimento midiático e comercial de certos grupos evangélicos, e de fazer isso em termos estritamente – evangélicos.
Uma dessas facetas é a relação com o dinheiro. O evangelho de Jesus é claro e radical ao pregar o desapego das riquezas deste mundo – “não se pode servir a dois senhores, a Deus e ao dinheiro”. No entanto, recentemente a revista norte-americana Forbes colocou seis dos nossos mais combativos líderes evangélicos entre os homens pessoalmente mais ricos do Brasil. O que não é de estranhar, tal a criatividade e fervor com que o pecado da simonia, ou venda de favores divinos, é praticado em cultos onde a conta bancária da Igreja rivaliza em citações com os versículos sagrados. Neles, os fiéis são constantemente estimulados a fazer suas ofertas, “mas só se Deus lhes pedir isso no fundo dos seus corações, diz o pastor com voz melíflua, como se aquelas vidas já tão vulneráveis estivessem em condições de ficar mal com Deus também.
Outro ponto igualmente delicado nessas igrejas mundanamente tão vitoriosas é a questão do poder. Em várias passagens o evangelho é claro ao dizer que o Reino de Jesus não é deste mundo – “dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” é a mais conhecida expressão dessa verdade. Quando, depois da partilha dos pães, quiseram fazê-lo rei, Jesus “fugiu dali para o outro lado do lago”. No entanto, entre nossos líderes evangélicos mais creditados na Forbes, é intensa a participação no jogo político- partidário do país, não como cidadãos, mas acintosamente em nome dos votos do rebanho, formando avidamente bancadas evangélicas como se delas, por força de lei, devesse vir uma salvação que, como o evangelho insiste, é de outra ordem. Qualquer pessoa verdadeiramente religiosa sabe que não é pelo poder, dinheiro, milagres grotescos e truques de marketing que o reino de Deus avança.
Evangelho quer dizer boa-nova e alguns empresários da fé mal desconfiam que, com sua fixação em dinheiro e poder, estão apenas reproduzindo o pior da Igreja Católica em outras eras. Foi ao unir-se ao Império Romano no século IV que ela se desfigurou a ponto de passar séculos sofrendo toda a sorte de interferências mundanas em sua real missão. Foi vendendo indulgências para construir grandes templos que em Roma que ela deflagrou, e mereceu, a Reforma Protestante. A mistura de religião com poder civil sempre se revelou receita infalível de guerras e perseguições sem fim e nem é preciso ser um grande estudioso para constatar o quanto, na história da humanidade, o pecado e a dúvida mataram muito menos do que certo tipo pureza e de fé.
Triste perceber também o quanto essa militância política de líderes evangélicos em nada revela aquela chama sagrada dos grandes profetas de Israel que não temiam enfrentar os poderosos em nome dos mais fracos e mais pobres. O mal, para os eleitos da Forbes, nunca está nas estruturas injustas, corruptas e opressoras. Nenhum deles vai morrer como o pastor Martin Luther King morreu pelos direitos dos negros, ou sofrer como o bispo Desmond Tutu sofreu apoiando Mandela contra o apartheid, ou levar uma bala no coração em pleno altar como Dom Oscar Romero durante a sangrenta ditadura de El Salvador, ou ter de fugir do Brasil como fez a Irmã Giustina por ousar encarar a elite de São Gabriel da Cachoeira que estuprava meninas índias. Por pouco ela não tem o mesmo destino da Irmã Dorothy no Pará.
Enfrentar as injustiças dos poderosos pode pegar mal para o negócios e depois, diria o Pastor Feliciano, aquelas meninas eram apenas umas indiazinhas, não eram negras nem homossexuais. Melhor, então, chutar beatle morto. Melhor lutar para impedir que seja aprovado no Brasil esse grande responsável pela injustiça, a miséria, o analfabetismo, a alta da inflação, a falta de saneamento básico, o descontrole dos gastos públicos e o desmatamento ilegal : o casamento gay.
Jesus se refere a essa magnificação da irrelevância para encobrir o que importa quando diz que os fariseus são mestres em “coar mosquitos e engolir camelos”.
Vale lembrar, no entanto, que, silenciosamente, muitas igrejas evangélicas bem sabem que nada tem de evangélico esse uso de Deus para excluir e perseguir quem quer que seja, ou aquele tipo de pureza que precisa do impuro para brilhar, combater, explorar ou, vestido de branco, matar.
Esses arroubos de ira falsamente sagrada são úteis apenas na medida em que nos lembram algumas verdades bem comprovadas na prática: que nada é mais tóxico do que uma pureza infeliz, que o nazismo era, em última análise, uma forma de pureza e que não precisa esperar muito para constatar que todo o moralista extremado alguma está escondendo, aprontando ou levando por fora.
Mas é reconfortante pensar que nada disso vem do evangelho. Nas palavras e nos atos de Jesus, a fronteira entre o bem e o mal nunca se passa entre raças, seitas, partidos ou opções sexuais, mas pelo coração de cada um, diariamente. O que ele mais pedia aos seus seguidores não deveria vir de fora, das aparências e conveniências sociais, mas de dentro, do coração . E eram coisas bem simples e libertadoras: um amor tão indiscriminado como o sol e a chuva que igualmente vivificam a horta dos santos e dos pecadores; um amor tão eficiente como o do bom samaritano que recolhe (e não chuta) o esquecido à beira da estrada; um desapego radical aos deuses deste mundo, dinheiro, poder e vaidades; uma confiança, nas difíceis, semelhante à dos pássaros do céu e dos lírios do campo; e, principalmente, trabalhar todos os dias e todas as formas pelo advento do Reino de Deus, um reino de fraternidade e paz, a cujo serviço estão, ou deveriam estar, as organizações religiosas em seu nome formadas.
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Carlos Moraes é jornalista, escritor e formado em Teologia. Publicou, pela Editora Record: Como ser feliz sem dar certo e outras histórias de salvação pela bobagem, Agora Deus vai te pegar lá fora e Desculpem, sou novo aqui.
No Sul21

Um comentário:

valdemar fazano disse...

Excelente texto, disse tudo e mais um pouco,são ludibriadores da fé de pessoas as vezes em desespero, mas há a lei de retorno quem planta colhe.