Pelo voto obrigatório
Recentemente, discuti com jovens estudantes, em Belo Horizonte, o livro que escrevi com Mário Sérgio Cortella, Política: para não ser idiota. Sabemos que hoje se debate a reforma política. Para os partidos, a questão principal é como eleger os deputados. Para os cidadãos, as questões principais são a da fidelidade partidária, que o Judiciário acabou impondo, e a do voto obrigatório ou não. Os jovens a quem falei, tendo na sua maioria entre 17 e 19 anos, racharam pela metade na questão do voto. Dos dois lados, argumentaram bem. Este mês, exponho aqui argumentos a favor do voto obrigatório. Na próxima coluna, defenderei o voto facultativo. (leia a seguir)
Recentemente, discuti com jovens estudantes, em Belo Horizonte, o livro que escrevi com Mário Sérgio Cortella, Política: para não ser idiota. Sabemos que hoje se debate a reforma política. Para os partidos, a questão principal é como eleger os deputados. Para os cidadãos, as questões principais são a da fidelidade partidária, que o Judiciário acabou impondo, e a do voto obrigatório ou não. Os jovens a quem falei, tendo na sua maioria entre 17 e 19 anos, racharam pela metade na questão do voto. Dos dois lados, argumentaram bem. Este mês, exponho aqui argumentos a favor do voto obrigatório. Na próxima coluna, defenderei o voto facultativo. (leia a seguir)
Por
que o voto, que é direito, seria também obrigação? Porque é a principal
expressão de uma sociedade democrática. A democracia é o regime no qual
o cidadão tem mais liberdades. Mas essas liberdades não caem do céu.
São construídas por nós. "Nós" quer dizer: todos nós. A democracia é o
único regime em que todos são iguais em direitos. Ou seja, todos os
eleitores são considerados adultos, maiores de idade. O poder é
conferido pelos cidadãos. Por isso, a democracia não admite pa ter na
lismo, condescendência, clien te lismo. Cidadão é quem participa
ativamente da construção da cidade - civitas, pólis - isto é, do Estado.
É o contrário do súdito, o subdictus, aquele que está debaixo do dizer
alheio. Nas monarquias, despotismos e ditaduras, há alguém que
supostamente protege ou cuida dos outros. Já os cidadãos, sendo iguais,
não podem ser tutelados. Não podemos ser tratados como crianças. O chefe
de governo não é pai da pátria nem dos cidadãos.
Assim,
na democracia, temos responsabilidade. Se não quisermos votar por
acharmos a política ruim, corrupta, insatisfatória, estaremos errados.
Porque a quem posso responsabilizar, se a política é má? Cabe a "nós"
mudá-la. Se ela é assim, é porque a deixamos ser assim. Pode até ser que
nossa política esteja mal devido a problemas do passado; mas, mesmo
assim, o futuro é nossa responsabilidade. Não escolhi o passado político
nem pessoal, porque não escolhi nascer rico ou pobre, bonito ou feio;
mas depende de mim o que, de agora em diante, farei com isso. Então, se
meu país vai mal, cabe a nós mudá-lo para melhor. Daí que votar seja uma
obrigação ética. Daí que votar seja apenas um indicador de uma
obrigação ética mais abrangente, que é de participar da vida pública o
mais possível.
Estas são razões
fortes pelo voto obrigatório. Em função delas, pelo menos 20 países
obrigam a votar, entre eles, Austrália, Bélgica, Costa Rica, Itália. Na
maior parte deles, é verdade que não há punição para quem se abstém. O
dever é moral. Mas, como se vê, não é só no Brasil que há o voto
obrigatório, e há bons argumentos em seu favor.
Temos
também um aspecto prático, pragmático. Em países onde há forte
desigualdade social, como nos Estados Unidos, o voto facultativo gera um
círculo vicioso. Quem não vota - negros, hispânicos, pobres,
semianalfabetos - acaba não sendo representado. Os políticos não têm
interesse em defender os interesses dos não eleitores. Assim, esses vão
ficando cada vez mais excluídos - e, excluídos, votam ainda menos. É por
isso que existe nos EUA um movimento pelo voto obrigatório: ele levaria
a uma inclusão social maior dos mais pobres.
Vemos,
portanto, razões tanto teó ricas quanto práticas para defender a
obrigatoriedade do voto, por antipática que seja a uma parte da
população. Mas, para equilibrar as coisas, na próxima coluna vamos ver
como se justifica o voto facultativo. Não é uma questão de certo ou
errado. E, como é um tema candente, vale a pena aprofundar a discussão.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo (USP)
No Contoversia
~ o ~
Experimentar o voto facultativo
Reforma
política é um assunto de que se fala com frequência, mas nunca se sabe
bem de que se trata. Na verdade, porém, temos no Brasil apenas duas ou
três reformas políticas, se tanto, que realmente estão no horizonte. Uma
é a dos partidos e analistas políticos: como eleger os deputados
federais, pergunta-se. Mudar sua forma de escolha acarretaria,
espera-se, melhor representação e, sobretudo, menos corrupção. Daí que
esse tema esteja ligado à questão do financiamento eleitoral. O PSDB
defende o voto distrital, o PT a manutenção do voto proporcional, só que
em lista fechada. A reforma política que provém dos partidos resume-se
nisso. Voltaremos a ela, numa próxima coluna.
Porque
há outra "reforma política", nunca formalizada, de poucas chances, mas
que vem de baixo para cima - ou, pelo menos, aparece em cartas de
leitores e em conversas de bar. Não é assumida pelos partidos. Aliás,
não é apenas uma, são duas reformas políticas. A primeira já está
valendo. É a fidelidade partidária. Não por acaso, o Congresso nunca a
regulamentou, apesar de constar da Constituição. Foi regulada pelo STF.
Falta, claro, aplicá-la; por ora, não passa de palavras.
A outra é o voto facultativo.
Votar deve ser obrigação ética, não punitiva
Não
quer dizer que as mesmas pessoas defendam a fidelidade partidária e o
voto facultativo. Creio que, em nome da ética, a grande maioria dos
eleitores é a favor de que o eleito não saia do partido pelo qual foi
escolhido. Por sinal, essa é a única reforma política que é ética de
ponta a ponta. Com raras exceções, não há como defender que uma pessoa
se eleja pela oposição e passe para o governo.
Já
no caso do voto facultativo, não sei qual a sua popularidade. É o
preferido dos leitores que escrevem aos jornais, o que é um indicador
interessante. Mas muitos desses eleitores, provavelmente de classe
média, parecem mais empenhados, não em ter o direito de não votar, mas
em que os pobres não votem. Já li cartas afirmando que, se o voto fosse
facultativo, quem "não tem consciência política" não votaria.
Obviamente, quem "não tem consciência política" é simplesmente quem
discorda de nós... Esse é um discurso velho, conservador, que lembra o
século XIX, quando se temia que uma maioria de pobres mexesse nas leis
tributárias, no orçamento, em suma, na desigualdade.
Uns
meses atrás, discutindo com 200 alunos do cursinho vestibular
Pré-Federal, em Belo Horizonte, vi que a maioria deles era pelo voto
obrigatório - não uma enorme maioria, mas uma maioria clara. É um dado
interessante.
Mesmo assim, creio
que poderíamos tentar uma experiência com o voto facultativo. Nosso país
não é o único a ter o voto obrigatório. Austrália, Bélgica, Costa Rica,
Itália também o têm. Mas, em sua maior parte, eles não punem os que
deixam de votar. Já o Brasil os castiga com um penduricalho de
restrições mesquinhas, como por exemplo a dificuldade para tirar
passaporte. Penso que, de duas uma: ou o voto é tão importante, para que
todos construam a coisa pública, a "res publica", que deveríamos punir
seriamente quem não vota - por exemplo, impondo uma semana de trabalho
numa ONG - ou então o melhor é largar os penduricalhos e investir no
caráter fortemente ético da obrigação cívica. Não há democracia sem
cidadãos. Portanto, devemos ensinar a todos, desde cedo, que defender a
república é uma obrigação - ética - de todos.
Poderíamos
fazer um teste. Manteríamos o voto obrigatório na Constituição. Ela não
prevê punições, que estão em leis, as quais foram somando as pequenas
restrições a que aludi (e uma multa irrisória). Mas suspenderíamos as
leis punitivas por um ciclo eleitoral, isto é, por um ano de eleições
municipais e outro de eleições gerais. E veríamos no que dá.
Será
que realmente despenca a participação eleitoral, com o voto
facultativo? Não sei. É consenso que votamos com mais ânimo para o
Executivo do que para o Legislativo - mas, como se trata da mesma
eleição, a abstenção sempre será a mesma. Mas o importante é pôr os
partidos para trabalhar. Como disse em coluna anterior, hoje eles têm a
reserva de mercado de nosso voto. Temos que votar; portanto, em quem
votamos? Já se os partidos tiverem de se empenhar para mostrar aos
eleitores que o voto é importante e traz resultados, a mudança terá
valido a pena.
É claro que teria
de haver punições severas, para quem tentasse impedir alguém de votar -
inclusive de forma indireta, por exemplo, induzindo ou instigando o
eleitor a trabalhar o dia inteiro das eleições. Mas, se conseguirmos
manter um índice elevado de participação eleitoral, o resultado será
precioso: enfatizaremos o caráter ético e não punitivo da obrigação
eleitoral, promoveremos uma grande pedagogia cívica e, finalmente,
teremos certeza de que as pessoas votam por convicção. Acredito, aliás,
que será baixo o número de abstenções. Justamente devido à
obrigatoriedade, temos longa tradição de voto. Creio que a obrigação
legal de votar completou seu papel, e pode, hoje, se tornar um dever
puramente ético.
Insisto: seria
bom tratar-se de uma experiência. A lei suspenderia as punições por duas
eleições sucessivas. Depois, as sanções voltariam a vigorar - salvo o
caso de nova lei, que as suprima em definitivo. Assim, os defensores do
voto obrigatório nada teriam a temer. O ônus de aprovar o fim definitivo
das punições será de quem quiser extingui-las. Se não houver uma lei
nova após quatro anos, retorna-se ao statu quo da obrigatoriedade. E
poderemos testar todos os riscos dessa mudança - que, com certeza, será
mais comentada nas cartas de leitores do que tem sido o debate entre o
voto distrital e a lista fechada.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na Universidade de São Paulo.
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