sábado, 15 de outubro de 2011

O otimismo geral da nação


Para celebrar sua 700ª edição, ÉPOCA refez a pesquisa de opinião de seu lançamento, em 1998. Resultado: os níveis de confiança e satisfação são recordes. O que explica o perene otimismo brasileiro?
Que o brasileiro esbanja otimismo sobre o futuro não é novidade. Há exatos 70 anos, o austríaco Stefan Zweig cunhou a famosa expressão “Brasil, país do futuro”, que captava a atmosfera esperançosa do país e acabou virando título de seu livro mais conhecido. Cientificamente isso também já foi comprovado. Em 2009, uma pesquisa mundial feita pelo Gallup World Poll mediu o grau de satisfação com a vida em 144 países. As pessoas precisavam responder quão felizes estavam numa escala de 0 a 10. A média 7 atribuída pelos brasileiros colocou o país na 17a posição no ranking mundial, seis posições à frente da própria colocação no ranking anterior, de 2006. Considerando o PIB per capita, que colocava o Brasil em torno do 50o lugar no mundo, esse desempenho já chamava a atenção. Quando os pesquisadores do Gallup perguntaram sobre a expectativa de felicidade para 2014, o Brasil virou campeão mundial. Com nota 8,7, apareceu em primeiro lugar na lista de 144 países. Agora, dois anos depois, uma ampla pesquisa exclusiva constatou que o otimismo brasileiro está calçado na realidade econômica, reflete a melhoria da vida no presente e – a despeito dos problemas – está em ascensão.
Para celebrar sua edição número 700, ÉPOCA decidiu refazer a pesquisa sobre satisfação com a vida e expectativa de futuro que foi tema da capa da edição número 1 da revista, em 25 de maio de 1998. No levantamento de 13 anos atrás, ÉPOCA estreou nas bancas mostrando o retrato de uma nação moderadamente otimista, menos ufanista que seus vizinhos latinos, mas algo descrente da legitimidade da democracia. Parecia razoavelmente satisfeita com a vida, mas muito preocupada com o problema do desemprego. Falava-se naquele momento que a autoestima do brasileiro estava “saindo do fundo do poço”. O que mudou nessa sociedade, 700 edições depois, é o mote da atual pesquisa. Ela foi levada a campo pelo Instituto MCI no mês passado, com as mesmas perguntas de 1998, elaboradas então pelo centro chileno Latinobarômetro e aplicadas aqui pelos institutos Mori Brasil e Vox Populi.
Apesar de problemas crônicos como corrupção e violência, o país que emerge da consulta parece viver um momento de intensa satisfação, inédita desde a redemocratização, há pouco mais de 25 anos. Tostão, o ex-craque de futebol, hoje cronista, escreveu, dias atrás, um artigo em que captura essa sensação: “O complexo de vira-lata (que Nelson Rodrigues atribuiu aos brasileiros) continua presente. Porém, existe hoje, bastante forte, o sentimento oposto, o complexo de grandeza (...) Existe hoje uma euforia em parte da sociedade, como se o Brasil estivesse uma maravilha e muitos outros países falidos”.
A pesquisa encomendada por ÉPOCA mostra uma nação contagiada por esse “complexo de grandeza”. Há um sentimento de satisfação vários graus acima daquele constatado no fim dos anos 1990, algo que nem sempre é explicável pelas circunstâncias imediatas ou pelas ainda difíceis condições de vida da maioria. O otimismo parece fazer parte da psicologia brasileira mesmo em momentos de crise. Quando as coisas vão bem para o país, como agora, ele transborda. A que se deve isso?
O sociólogo e jornalista Muniz Sodré trata disso no livro A comunicação do grotesco: introdução à cultura de massa no Brasil. Sodré relaciona mecanismos psíquicos e sociais que passaram a fazer parte do “ser brasileiro”. Além do “espírito de conciliação”, do “personalismo generalizado”, do “gosto pelo verbalismo” e da “transigência nas relações raciais”, ele dedica especial atenção ao que chama de “otimismo generalizado” – que, segundo Sodré, muitas vezes transborda para o ufanismo. Para tentar explicar a origem desse fenômeno, o autor volta aos anos 1930, quando o cenário político, econômico e social passou por profundas transformações. Com a ascensão de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, o governo passou a incentivar um modelo de integração nacional calcado na industrialização, na urbanização e na complexidade do aparelho estatal, que fortaleceu o nacionalismo. O rádio se consolidou como instrumento de difusão da ideia de brasilidade. A cultura foi contaminada por esse clima de euforia ufanista e passou a reproduzi-lo em cancões como “Aquarela do Brasil”, de Ary Barroso. As riquezas naturais (“Essas fontes murmurantes, onde mato minha sede...”) começaram a ser decantadas. Num cenário de orgulho cada vez mais retumbante, até Deus virou brasileiro. O otimismo se exacerbou e o ufanismo tornou-se uma característica nacional. O Brasil se converteu no “país do futuro”, diz Sodré, um país grandioso, de enorme potencial, de gente simples, mas trabalhadora. “Deixam de existir limites entre o Brasil real e o Brasil possível”, escreveu ele.
Os aspectos em que esse otimismo mítico aparece hoje de forma mais evidente dizem respeito às condições de vida, no presente e no futuro. “Sua vida, hoje, é melhor, igual ou pior que a de seus pais?” No fim dos anos 1990, menos da metade da população (44%) respondia “melhor”. Hoje, o total dos que julgam ter avançado em relação aos pais saltou para 73%, um incremento de 29 pontos porcentuais. Os que afirmavam ter uma vida apenas igual ou pior que a dos pais formavam o grupo majoritário em 1998, com 55% da população. Agora, somam 26%, apenas um quarto do total.
“É um avanço surpreendente, maior que o esperado”, diz o cientista político Marcus Figueiredo, pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Iesp/Uerj). “Ou o Brasil deu um salto muito grande nesses 13 anos ou houve um surto qualquer que fez explodir o otimismo na cabeça das pessoas”, afirma ele. “Fico com a primeira hipótese. Do governo Fernando Henrique Cardoso para cá, a sociedade só teve ganhos. A partir do governo Lula, esses ganhos se expandiram para os mais pobres.” O psicólogo Odair Furtado, coordenador do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC de São Paulo, tem opinião parecida: “Por um período na ditadura, tivemos avanço econômico, mas ele atendeu a um segmento privilegiado. Agora, o setor atendido é maior e mais importante. Isso é novo em nossa história. Vivemos um momento que pode mudar a autoestima do brasileiro”.
Nas expectativas em relação ao futuro, o avanço é equivalente. “A vida de seus filhos será melhor, igual ou pior do que a sua própria vida?”, foi a pergunta feita em 1998 e refeita agora. Antes, o otimismo já era perceptível. Para 55% da população, a vida dos filhos tenderia a ser melhor. Hoje, o grupo que compartilha esse sentimento de confiança cresceu para 70%, 15 pontos a mais.
Para o cientista político Antonio Lavareda, dono do Instituto MCI, que conduziu a pesquisa para ÉPOCA, a sensação de contentamento com a vida captada na pesquisa tem um efeito colateral extremamente positivo: ajuda a consolidar o valor da democracia. Os números recém-apurados por sua empresa coadunam essa tese. Em 1998, exatamente 50% dos brasileiros diziam que a democracia era preferível a qualquer outra forma de governo. Agora, diante da mesma pergunta, 75% da população responde positivamente. “É um resultado fantástico”, diz Lavareda. “Serve para provar o valor do ambiente econômico e social. Se a gente fizesse essa mesma pergunta em 1992, certamente esse valor não seria tão reconhecido. Era um período de crise econômica, com inflação e pouco crescimento. Também havia decepção política, com as denúncias que resultaram no impeachment do presidente Fernando Collor de Mello.
Além de refazer as perguntas de 1998, ÉPOCA procurou as mesmas pessoas entrevistadas para a edição número 1 da revista para verificar como a vida delas evoluíra nesse intervalo de pouco mais de uma década. Cinco foramreencontradas, concordaram em atualizar seu depoimento e posar para novas fotos. São as pessoas que aparecem ao longo desta reportagem, sempre em duas situações: numa imagem de 1998 e na atual. Treze anos depois, as histórias desses brasileiros selecionados aleatoriamente continuam servindo de exemplo para ilustrar as tabulações estatísticas. Na minúscula amostra não científica de cinco cidadãos, quatro afirmam ter progredido de vida desde então, conforme pode ser lido nas sínteses dos depoimentos. Por coincidência, é uma proporção que combina com as conclusões da apuração metodológica dos pesquisadores.
A mensagem
Para o Brasil
O otimismo brasileiro não pode ser usado 
para ignorar os problemas não resolvidos do país
Para você
Em menos de uma geração, as condições de vida
podem mudar radicalmente – para melhor
O que explica esse avanço generalizado do otimismo? O economista Marcelo Neri, um dos maiores especialistas do Brasil em estudos sobre pobreza e desigualdade, pesquisador da Fundação Getulio Vargas do Rio de Janeiro, afirma que há razões objetivas que justificam o aumento da confiança. Para ele, parte importante da explicação está no forte movimento de redução do desemprego, simbolicamente representado pela carteirinha azul do Ministério do Trabalho. “O sonho da carteira de trabalho está sendo realizado”, afirma Neri. “Isso dá segurança presente e segurança futura para as pessoas. Há níveis recordes de emprego formal, uma situação de quase pleno emprego, apesar da legislação trabalhista, que não ajuda muito.” Desemprego era a maior preocupação da população brasileira em 1998, seguido por criminalidade e educação. Hoje, o medo de ser posto na rua caiu para a quinta posição no “ranking da dor de cabeça”.
Neri relaciona vários outros dados que ajudam a explicar o aumento do otimismo. “A vida do brasileiro está melhorando mais que o Brasil. Nos últimos anos, a renda das famílias cresceu num ritmo maior que o Produto Interno Bruto”, afirma. “Além disso, a desigualdade está caindo há mais de uma década de forma ininterrupta. É um dado espetacular.”
Entre 2001 e 2010, segundo seus cálculos, a renda dos 50% mais pobres cresceu 68%, enquanto no topo da pirâmide, entre os 10% mais ricos, o avanço foi mais moderado, de 10%. “Nesse aspecto, a posição do Brasil é muito especial. China, Índia, Estados Unidos e diversos outros países foram palco de um movimento oposto, de aumento da desigualdade.”
Apesar da melhoria observada na distribuição de renda, a percepção de que o Brasil é um país injusto continua praticamente inalterada. Em 1998, 91% da população classificava a distribuição de renda no Brasil como injusta. Agora, o índice é de 87%, uma redução que, segundo Lavareda, pode ser classificada apenas como “residual”. O que caiu com um pouco mais de força foi a ideia segundo a qual só dá para subir de vida se a pessoa tiver “relações especiais” – algum tipo de favorecimento que não leva em conta apenas o mérito. Antes, 86% dos brasileiros acreditavam nisso. Agora, o índice é de 70%, consideravelmente menor que 13 anos atrás, mas ainda majoritário.
Quando o assunto é economia, o otimismo dos brasileiros parece mais moderado. Em 1998, período imediatamente anterior à desvalorização do real, apenas 11% da população avaliava a situação econômica do Brasil como ótima ou boa. Hoje, o porcentual é quase o triplo, mas ainda bem abaixo da parcela que avalia a situação econômica como razoável.
Curiosamente, há mais gente hoje dizendo que seus rendimentos mensais não são suficientes para cobrir todas as despesas do mês. Ao contrário do que esse indicador pode sugerir, não se trata de um dado ruim. A explicação passa pela expansão recente do crédito. É resultado de um maior acesso da população aos produtos financeiros.
Ondas consistentes de otimismo têm o poder contagiante de melhorar a autoestima dos cidadãos, servem de alavanca para a educação, aceleram o empreendedorismo, podem ajudar na produtividade e até na criatividade. Mas há riscos. Um dos maiores erros que o Brasil poderia cometer neste instante seria confundir essa tendência positiva de confiança no presente e no futuro com a ideia de superação dos problemas. A mesma pesquisa que mostra avanço nas condições de vida apresenta um rol de novos desafios a enfrentar.
O principal, segundo a opinião dos entrevistados, é a saúde.
Para ter uma ideia da valorização desse assunto no intervalo de 13 anos, basta notar que na primeira edição de ÉPOCA, em 1998, o tema saúde nem chegou a ser citado na relação dos obstáculos mais sérios do país (o que impede uma comparação direta). O que se pode comparar é a posição relativa das prioridades. Entre 1998 e hoje, enquanto o desemprego caiu da primeira para a quinta posição, a saúde assumiu o posto de campeão das preocupações. No país dos otimistas, alguém se arrisca a dizer que em 2024 (daqui a 13 anos) esse problema estará resolvido?
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Ricardo Mendonça, Alexandre de Mello, Keila Cândido e Leopoldo Mateus

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