quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Anaïs Nin - Prefácio de Delta de Vénus

Também do Blog do Favre.

Anaïs Nin - Prefácio de Delta de Vénus(tradução do original: Paulo J. Lourenço)Abril, 1940

Um coleccionador de livros ofereceu cem dólares por mês a Henry Miller para que ele escrevesse histórias eróticas. Pareceu-me um castigo dantesco condenar Henry a escrever erótica a um dólar por página. Ele revoltou-se porque o seu sentimento era o oposto de um Rabelais. Escrever por encomenda era uma ocupação castrante e escrever com um voyeur a espreitar pelo buraco da fechadura tirava toda a espontaneidade e prazer das suas aventuras.
Dezembro, 1940
Henry contou-me acerca do coleccionador. Por vezes almoçavam juntos. O coleccionador comprou um manuscrito a Henry e sugeriu-lhe que escrevesse para um dos seus antigos e abastados clientes. Ele não podia dizer muito acerca do seu cliente excepto que estava interessado em erótica.
Henry começou a escrever alegremente, na brincadeira. Inventou histórias malucas que o faziam rir. Encarou a tarefa como uma experiência e, de início, parecia fácil mas ao fim de algum tempo a experiência abateu-se sobre ele. Não desejava tocar em nenhum do material que tinha reservado para o seu trabalho sério e assim ficou condenado a forçar as suas invenções e a sua disposição.
Nunca recebeu uma palavra de reconhecimento do seu estranho patrono. Podia ser natural que não desejasse revelar a sua identidade mas Henry começou a provocar o coleccionador. Este patrono existia de facto? Estas páginas eram para o próprio coleccionador para temperar a sua própria vida melancólica? Seriam o coleccionador e o patrono uma e a mesma pessoa? Henry e eu discutimos isto longamente, simultaneamente confusos e divertidos.
por esta altura, o coleccionador anúncio que o seu cliente viria a Nova Iorque e que Henry se encontraria com ele. Mas, de alguma forma, este encontro acabou por nunca se concretizar. O coleccionador era generoso em descrições sobre como enviava os manuscritos por correio aéreo, quanto custavam os envios, pequenos detalhes com a intenção de acrescentar realismo às pretensões que ele fazia acerca da existência do seu cliente.
Um dia ele quis uma cópia de «Black Spring» com uma dedicatória. Henry disse-lhe:- “Mas eu pensava que me tinha dito que ele já possuía edições assinadas de todos os meus livros”.- “Ele perdeu a cópia de «Black Spring».”- “A quem devo dedicá-la?” - perguntou Henry inocentemente.- “Escreva apenas «a um bom amigo» e assine o seu nome”.
Algumas semanas depois Henry precisou de uma cópia de «Black Spring» e não encontrou nenhuma. Decidiu pedir emprestada a cópia do coleccionador e dirigiu-se ao seu escritório. O secretário pediu-lhe para esperar. Começou a passar os olhos pelos livros que estavam nas prateleiras. Viu uma cópia de «Black Spring». Retirou-a. Era aquela que ele havia dedicado “a um bom amigo”.
Quando o coleccionador apareceu, Henry mencionou este facto, rindo-se. Igualmente de bom humor o coleccionador explicou:- “Oh, sim! O velhote ficou tão impaciente que lhe mandei a minha cópia enquanto esperava que assinasse esta. Tenho a intenção de trocar as cópias quando ele voltar a Nova Iorque”.
Henry disse-me quando nos encontrámos:- “Estou mais estupefacto que nunca”.
Quando Henry perguntou qual estava a ser a reacção do seu patrono à sua escrita a resposta foi:- “Oh, ele gosta de tudo. É tudo maravilhoso mas ele prefere a narrativa, apenas o contar da história. Nada de análises, nada de filosofia”.
Quando Henry precisou de dinheiro para as suas despesas de viagem sugeriu-me que eu escrevesse. Senti que não queria dar nada de genuíno e decidi criar uma mistura de histórias que tinha ouvido e invenções, fazendo de conta que eram do diário de uma mulher. Nunca cheguei a conhecer o coleccionador. Ele deveria ler as minhas páginas e dizer-me o que pensava. Hoje recebi um telefonema. Uma voz disse:- “Está bom mas deixe de lado as descrições e as poesias de tudo o que não seja sexo. Concentre-se no sexo”.
Assim, comecei a escrever de forma falaciosa, tornei-me mais grotesca, inventiva e tão exagerada que pensei que ele percebesse que estava a caricaturizar a sexualidade. Mas não houve nenhum protesto. Passei dias na biblioteca a estudar o “Kama Sutra” e ouvi as aventuras mais extremas de amigos.
- “Menos poesia” - disse a voz pelo telefone. “Seja específica”.
Mas alguma vez alguém tirou prazer de ler uma descrição clínica? O velhote não saberia como as palavras carregam consigo as cores e os sons para a carne?
Todas as manhãs, depois do pequeno-almoço me sentava e escrevia a minha porção de erótica. Uma manhã escrevi “Havia um aventureiro húngaro…” e dei-lhe muitas vantagens: beleza, elegância, graça, charme, os talentos de um actor, conhecimentos de muitas línguas, um dom para a intriga e para sair de dificuldades e um dom para evitar a permanência e a responsabilidade.
Outra chamada telefónica:- “O velhote está satisfeito. Concentre-se no sexo. deixe de lado a poesia”.
Isto foi o início de uma epidemia de “diários” eróticos. Toda a gente escrevia as suas experiências sexuais. Inventadas, ouvidas, investigadas no Krafft-Ebing e livros clínicos. Tínhamos conversas cómicas. Contávamos uma história e os restantes de nós tinham que decidir se era verdadeira ou não. Ou plausível. Seria isto plausível? Robert Duncan ofereceria-se para experimentar, para testar as nossas invenções, confirmar ou negar as nossas fantasias. Todos nós precisávamos de dinheiro e assim juntámos as nossas histórias.
Eu tinha a certeza de que o velhote não sabia nada sobre as beatitudes, os êxtases, as fantásticas reverberações dos encontros sexuais. Deixe de lado a poesia era sua mensagem. Sexo clínico, despido de todo o calor do amor - a orquestração de todos os sentidos, toque, audição, olhar, palato; todos os acompanhamentos eufóricos, a música de fundo, os estados de alma, atmosfera, variações - forçavam-no a recorrer a afrodisíacos literários.
Poderíamos ter forjado melhores segredos para lhe contar, mas ele seria surdo a tais segredos. Porém, um dia, quando ele se saturasse dir-lhe-ia como ele quase nos fez perder o interesse na paixão, devido à sua obsessão com gestos esvaziados das suas emoções e como o tínhamos vituperado porque ele quase nos tinha feito tomar votos de castidade porque aquilo que ele tinha desejado que exluíssemos era o nosso próprio afrodisíaco-poesia.
Recebi cem dólares pela minha erótica. Gonzalo precisava de dinheiro para o dentista, Helba de um espelho para a sua dança e Henry dinheiro para a sua viagem. Gonzalo contou-me a história do Basco e Bijou e eu escrevia-a para o coleccionador.
Fevereiro, 1941
A conta telefónica estava por pagar. A teia das dificuldades económicas estava a fechar-se sobre mim. Toda a gente à minha volta irresponsável, insconsciente do afundar do barco. Escrevi trinta páginas de erótica.
Novamente acordei para a consciência de estar sem um cêntimo e telefonei ao coleccionador. O seu cliente rico tinha-lhe dito alguma coisa acerca do último manuscrito que lhe tinha enviado? Não, ele não tinha, mas ele ficaria com o último que havia escrito e pagar-me-ia por ele. Henry precisava de ir ao médico. Gonzalo precisava de óculos. Robert apareceu com B. e pediu-me dinheiro para ir ao cinema. Os restos da janela cairam sobre o papel e o meu trabalho. Robert apareceu e levou a minha caixa de papel de escrita. O velhote não estaria já cansado de pornografia? Não se daria um milagre? Comecei a imaginá-lo a dizer “Dêem-me tudo o que ela escreve, quero tudo, gosto de tudo. Vou mandar-lhe um grande presente, um grande cheque por todo o trabalho que ela teve”.
A minha máquina de escrever estava estragada. Com cem dólares no meu bolso recuperei o meu optismo. Disse a Henry:- “O coleccionador diz que gosta de mulheres simples e não intelectuais, mas convidou-me para jantar”.
Tinha um pressentimento que a caixa de Pandora continha os mistérios da sensualidade feminina, tão diferente da do homem e para a qual a linguagem do homem era inadequada. A linguagem do sexo ainda teria que ser inventada. A linguagem dos sentidos ainda tinha que ser explorada. D. H. Lawrence começou a dar uma linguagem ao instinto, ele tentou escapar ao clínico, ao científico, que apenas capturam o que o corpo sente.
Outubro, 1941
Quando Henry regressou fez uma série de afirmações contraditórias. Que ele conseguia viver de nada, que se sentia tão bem que até podia arranjar um emprego, que a sua integridade o impedia de escrever cenários em Hollywood, até que, por fim, eu disse:- “E que tal sobre a integridade de escrever erótica a troco de dinheiro?”
Henry riu, admitiu o paradoxo, as contradições. Riu e deixou o assunto.
A França teve uma tradição de escrita erótica num estilo fino e elegante. Quando comecei a escrever para o coleccionador pensei que haveria uma tradição semelhante aqui mas não encontrei mesmo nenhuma. Tudo o que vi era inferior, escrito por escritores de segunda. Nenhum bom escritor havia sequer tentado erótica.
Disse a George Barker como Caresse Crosby, Robert, Virginia Admiral e outros estavam a escrever. Apelou ao seu sentido de humor a ideia de eu ser a “madame” desta snob casa de prostituição literária, da qual a vulgaridade era excluída. Rindo, disse-lhe:- “Eu forneço o papel e o quimico, entrego o manuscrito anonimamente, protejo o anonimato de toda a gente”.George Barker achou que isto era muito mais humorado e inspirador que mendigar, pedir emprestado ou pedinchar refeições aos amigos. Juntei poetas à minha volta e todos nós escrevemos erótica linda. Como estávamos condenados a concentrarmo-nos apenas na sensualidade tínhamos violentas explosições de poesia. Escrever erótica passou a ser um caminho para a santidade em vez de ser um caminho para o deboche. Harvey Breit, Robert Duncan, George Barker, Caresse Crosby, todos concentrámos de tal forma os nossos esforços num tour de force (em francês no original), fornecendo ao velhote uma abundância de momentos de felicidade perversos, que agora ela suplicava por mais.
Os homossexuais escreviam como se fossem mulheres. Os tímidos escreviam acerca de orgias. As frígidas sobre satisfações alucinadas. Os mais poéticos condescendiam em bestialidade pura e os mais puros em perversões. Estávamos assombrados pelos maravilhosos contos que não conseguíamos contar. Sentávamo-nos, imaginávamos como sria o velhote, falávamos de como o odiávamos por ele não nos permitir uma fusão entre sexualidade e sentimento, sensualidade e emoção.
Dezembro, 1941
George Barker era muito pobre. Ele queria escrever mais erótica. Escreveu oitenta e cinco páginas. O coleccionador achou-as demasiado surreais. Eu adorei-as. As suas cenas de amor eram loucas e fantásticas. Amor entre trapézios.Gastou o seu primeiro dinheiro em bebida e eu não lhe podia emprestar mais nada para além de mais papel e mais papel-quimico. George Barker, o excelente poeta inglês, escrevendo erótica para beber, tal como Utrillo pintou quadros em troca de garrafas de vinho. Comecei a pensar no velho que todos detestávamos. Decidi escrever-lhe, dirigir-me a ele directamente, contar-lhe sobre o que sentíamos.
“Caro coleccionador, odiamo-lo. O sexo perde todo o seu poder e magia quando se torna explícito, mecânico, repetitivo, quando se torna numa obsessão mecânica. Torna-se uma seca. Ensinou-nos mais do que qualquer outra pessoa que conheça, como é errado não o misturar com emoção, fome, desejo, luxúria, tiques, caprichos, personalidades, relações mais fundas que mudam a sua cor, sabor, ritmos e intensidades.Você não sabe o que perde por causa do seu exame microscópico da actividade sexual excluída dos aspectos que são o combustível que produzem a ignição. Intelectual, imaginativo, romântico, emocional. É isto que dá ao sexo as suas texturas surpreendentes, as suas transformações subtis, os seus elementos afrodisíacos. Você está a limitar o seu mundo de sensações. Está a destruí-lo, a matá-lo à fome, a drenar o seu sangue.Se você alimentar a sua vida sexual com todas as excitações e aventuras que o amor injecta na sensualidade, você seria o homem mais potente do mundo. A fonte da potência sexual é a curiosidade, a paixão. Você está a ver a sua pequena chama morrer de asfixia. O sexo não se alimenta de monotonia. Sem sentimento, invenções, estados de alma, sem surpresas na cama. O sexo deve andar misturado com lágrimas, gargalhadas, palavras, promessas, cenas, ciúme, inveja, , todas as especiarias do medo, de uma viagem ao estrangeiro, novas faces, romances, histórias, sonhos, fantasias, música, dança, ópio, vinho.Quanto você perde por causa desse periscópio na ponta do seu sexo, quando podia ter um harém de maravilhas diferentes, nunca repetidas! Não existem dois fios de cabelo iguais, mas você não nos deixa gastar palavras para descrever o cabelo. Não há dois odores iguais, mas se nos expandimos nisso você grita-nos “Cortem a poesia!” Não há duas peles com a mesma textura e nunca a mesma luz, temperatura, sombras, nunca o mesmo gesto. Um amante, quando é excitado por amor verdadeiro, pode percorrer toda a gama de séculos de conhecimento sobre o amor. Que extensão, que mudanças de idade, que variações de maturidade e inocência, perversidade e arte…Sentámo-nos durante horas perguntando-nos como seria o seu aspecto. Se você fechou os seus sentidos à seda, luz, cores, odores, carácter, temperamento, por esta altura já deve ter mirrado por completo. Há tantos sentidos menores, todos correndo, como tributários do curso principal do sexo, alimentando-o. Apenas o batimento em uníssono do sexo e do coração pode criar extâse”.
POST-SCRIPTUM
Na altura em que escrevíamos erótica a um dólar por página apercebi-me que, durante séculos, só havíamos tido um modelo para este género literário: a escrita dos homens. Já estava consciente de uma diferença entre o tratamento masculino e feminino da experiência sexual. Sabia que havia uma grande disparidade entre a explicitude de Henry Miller e as minhas ambiguidades entre os seus humores e a visão Rabelaisiana do sexo e as minhas descrições poéticas do sexo nas porções não publicadas do diário. Como escrevi no “Volume III” do “Diário”, tinham um pressentimento que a caixa de Pandora continha os mistérios da sensualidade feminina, tão diferente do homem e para a qual a linguagem do homem era inadequada.
As mulheres, pensava eu, estavam mais aptas a fundir sexo com emoção, com o amor, e a preferirem um homem em vez de serem promíscuas. Isto tornou-se aparente para mim á medida que escrevia os contos e o “Diário”, e vi-o mais claramente ainda depois de começar a leccionar. Mas, apesar de a atitude das mulheres em relação ao sexo fosse bastante distinta da dos homens, ainda não tínhamos aprendido a escrever sobre ela.
No género erótico escrevia para entreter, sob pressão de um cliente que desejava que eu “deixasse de lado a poesia”. Eu acreditei que o meu estilo derivava da leitura de obras escritas por homens. Por esta razão durante muito tempo senti que havia comprometido o meu eu feminino. Pus o género erótico de lado. Relendo-o após todos estes anos vejo que a minha própria voz não fôra totalmente suprimida. Em numerosas passagens estava intuitivamente a usar uma linguagem feminina, a ver a experiência sexual a partir de um ponto de vista feminino. Finalmente decidi enviar a minha escrita erótica para publicação porque mostra os primeiros esforços de uma mulher num mundo que havia sido o domínio dos homens.
Se a versão integral do “Diário” fôr algum dia publicada, este ponto de vista feminino será estabelecido de forma mais clara. Mostrará que as mulheres (e eu, no “Diário”) nunca separaram sexo do sentimento, do amor do Homem completo.
Anais Nin
Los Angeles
Setembro, 1976″
Fonte Adlocutio Postado por Luis FavreComentários Tags: , , , , , , , , , , , , , , , , Voltar para o início

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